Lembrar-me do Ti-Libório dá-me a maior das alegrias, até
salivo só de pensar no assunto. Era cesteiro de profissão e barbeiro nas horas
vagas. Não de barbearia coletada, mas sim de barbearia improvisada na eira dos
canastros ao pé do espigueiro, cuja mó do pé de suporte servia de mesa para os
estojos, o cadeirão era um cesto de madeira deborcado no chão.
Antes de iniciar a tarefa, nunca dispensava o tradicional
trago de bagaço que até lhe fazia levantar a boina da cabeça. Em matéria de
gastronomia não estremava uma santola da sola de um sapato. Era poeta-divino na
arte da desgarrada, dom do qual nos ia dando umas dicas que tantas vezes nos tem
safado ao longo da vida em desenrasques de aflições extremas.
Aos sábados antes da
catequese, era o dia de tosquia à catraiada. Tinha sempre a algibeira em alerta
vermelho, mas nem por isso exigia qualquer contrapartida pelo serviço prestado.
Enquanto desempenhava a tarefa aproveitava o tempo a preparar-nos para o futuro
em relação ao mulherio, assunto que muito o preocupava.
Dizia que mais tarde teríamos que haver-nos com sete
mulheres para cada um. Mas quando lhe perguntávamos por onde andavam as outras
seis para além da tia Rita, desculpava-se antes de esclarecer o assunto: “as outras são do foro confidencial”.
Na introdução à aula
de ingresso ao curso de “como lidar com o
mulherio”, era vinculativo decorar a lição com a fluidez da tabuada dos
cinco. Dizia que ter várias mulheres é poligamia, ter duas é bigamia, e ter uma
só é uma desgraça de monotonia. Sendo aleatórias as primeiras perguntas, quem
falhasse a terceira era considerado causa perdida sem futuro e sem salvação.
O mestre conhecido como bastante viajante em rabos de saia, continuava
a lição. “Quando as aspirantes ao lugar
se apresentarem é necessário que cumpram os requisitos. Não será indispensável
uma auditoria, porem há que saber se a candidata vem à crava, e como nas boas
refeições, o pão duro e a carne passada demais são motivos suficientes para
imediata exclusão”.
Mas o que mais
preocupava o Ti-Libório, era a composição da seleção com as diversas variantes.
Esposas, amantes, companheiras, namoradas e engates casuais. Tendo preferência pelas
divorciadas e viúvas, que são um género de guarda-redes e ponta de lança, indispensáveis
na formação de qualquer plantel que tenha pretensões de alcançar a liderança.
Dizia que o primeiro aspeto a ter em atenção, é saber que
uma namorada tem um desempenho diferente de uma esposa ou de uma amante. Por
isso um pequeno falho na seleção, a coisa azeda e vira em pandemónio. “Deve ter-se em conta os currículos e as
necessárias habilitações.”
Insistia porem na obrigatoriedade do abastecimento nos
vários quadrantes a tempo e horas, para evitar queixas e possíveis reclamações.
Esta medida, pelas carrancas que o homem fazia, parecia uma das mais sérias
dificuldades que mais tarde iriamos enfrentar. É que na altura ainda vinha
longe o milagre mais abrangente da história da humanidade: O Viagra, que graças
a Deus e a um médico Britânico, ao tratar de algumas doenças vasculares, obteve
desta bênção da ciência e do acaso, um louvado sejas de milhares de milhões de
filhos de Deus, de coração, “e outros órgãos ao alto”, a sorrirem à recordação dos
velhos tempos, e retirarem do arquivo aquilo que parecia irremediavelmente
perdido, para voltarem a encher as discotecas e a curtir o brilho das estrelas
graças ao milagroso comprimido, que tal como a água benta, defendo que deve ser
fornecido a fundo perdido, (mesmo antes das taxas moderadoras) para purificação
de corpo-e-alma e outras milagrosas purificações.
Recomendava com afinco que uma oportunidade perdida nesta
atividade do mulherio nunca mais é recuperada, afirmava mesmo que tudo é muito
bonito, mas teimava em afirmar que “o
amor é como o fósforo, só dura enquanto há pau”, e que a determinada altura da vida, “o Criador só nos permitirá de dormir acompanhado de um morto e dois
reformados”. Fiquei traumatizado com tão macabra afirmação; “Um morto e dois reformados!”
Aos poucos, quando a tarefa exigia algum descanso, o Ti-Libório
fincava o cotovelo na cabeça do freguês para contemplar a paisagem. Punha os
olhos a pastar a perder de vista e murmurava; “a minha terra é a mais linda do
Mundo”. É claro que tais afirmações provocavam muitas dúvidas, porque era
voz corrente que o barbeiro de ocasião nunca teria arredado pé dos arredores da
paróquia.
Emocionava-se quando falava da nossa Vila e da sua
respeitada gente. Para vincular o que dizia, contava que uma noite a praça
estava cheia para celebrar a eleição de um político. Um morador da praça (bem
conhecido) abriu a janela a murmurar: “Que tanto povo, que tantas figuras, mas
que tão pouca gente”. Quando
estas palavras me vêm à memória provocam-me calafrios.
Lembram-me os anos oitenta
quando um ilustre publicitário francês, que fazia as delícias do mundo com os
seus spots publicitários. Numa entrevista televisiva foi-lhe colocada a questão,
qual a receita para conseguir tal sucesso,
respondeu: “É importante conseguir que o
consumidor seja um idiota feliz”, e quando lhe perguntaram como é possível conseguir tal proeza voltou à carga: “é fácil por um idiota a pular de
felicidade” dando como exemplo: “um cabo
de vassoura custa um vintém, três cabos custam dois: se o idiota comprar um
fica servido e poupa metade da despesa, mas como é idiota vai comprar os três, e
quando precisar do segundo, já precisa da vassoura nova com cabo incluído.”
Passadas décadas, tal como dantes, a praça desprovida de
gente, continua a encher-se de povo, de figuras e a comemorar entusiasticamente.
Hoje basta ao político afirmar que viu D. Sebastião no Pingo Doce a comprar um
CD da Ana Malhoa para provocar aplausos e aclamações. É assim mesmo: um Mestre de-obra-prima
ou a prima do mestre-de-obras é tudo igual ao litro, e se a prima for dotada
daqueles generosos atributos, o mestre pode descalçar as sandálias e contemplar
as generosidades da prima. Um Mestre descalço e sem generosidades não vai a
lado nenhum.
A verdade-verdadinha,
é que esta juventude foi vítima de uma terrível fraude, porque a geração
anterior para além de atrasada e analfabeta nunca acreditou em nada, por isso
deixou de transmitir aos seus descendentes qualquer valor. O pior foi quando “nós”,
burros, analfabetos e atrasados, “começamos” a gritar aos quatro ventos que a
juventude é que sabia, a juventude é que conhecia os valores que iriam
construir o nosso futuro. Estas coisas não decretam nem se fazem. Não é a
juventude que sabe, mas tem a obrigação de aprender os valores que nos regem e
os que hão-de-reger o nosso futuro. Talvez esta juventude gostasse de ter conhecido
o Ti Libório e alguns dos seus exemplos, antes de andar por aí à solta,
carregada de responsabilidade sem saber o que fazer à vida.
Nós, eramos gente anónima. Eles saem do anonimato através da
casa dos segredos e do Pokémon, e ainda com incentivos Institucionais da
Geringonça para perder a vergonha de caçar a carteira de quem poupou. Ainda me
lembro do tempo que os larápios arriscavam uma surra para gamar a carteira do vizinho.
Hoje já nem isso é preciso: o governo presta o serviço de ir larapiando em nome
dos larápios para manter viva tão nobre atividade.
Esta escola de vida dá razão à profecia do Ti Libório: “Pais
trabalhadores, filhos calaceiros, netos pedintes”. “Por favor, tentem ser felizes”. Bom ano.