domingo, 24 de abril de 2016

O, Wing-Chun, do Legionário


          Já poucos se lembravam do “Mandarim” quando regressou à terra natal. Agora conhecido por “Legionário”, nome que conquistou depois de alistar-se nas forças especiais da Legião Estrangeira Francesa para combater na guerra da Indochina (atual Vietnam do Norte, Camboja e Vietnam do Sul) ao lado das Forças Armadas Francesas.
         Homem educado, de fino trato, admirado de todos, de escassas mas de pesadas palavras, alheio aos disque-se-disse e aos cochichos de lareira. Lobo solitário portanto, que caçava apenas para suprir as mais prementes necessidades indispensáveis à sobrevivência.
          Um final de tarde como tantas outras, estávamos velhos e novos reunidos (matilha incluída) no largo da encruzilhada a ouvir as notícias trazidas pelo companheiro da “Calina”, um alfacinha-de-gema com cabedal valente, para além de outros valentes cabedais que tinha na conta-corrente. Conhecido por “amigo-da-onça”, (não pelas corriqueiras e habituais razões mas) porque enrolava cigarros com tabaco de onça-preta.
          Quando enrolava um cigarro a onça caiu-lhe ao chão. O Legionário com estranha cortesia em uso naqueles tempos, apanhou a onça que entregou ao visitante. Este, ao ver tão obediente disponibilidade voltou a deixar cair a onça, e sem pingo de cortesia ordenou ao Legionário para voltar a apanhá-la.
          Até ali tudo bem. Todos presenciamos a cena até ao momento que o Legionário se baixou para fazer o frete. A partir daí foi com se a fita partisse ao meio, provocando uma branca na malta, que só depois de a branca ir à vida voltamos a ver o “amigo-da-onça” (preta) a cores, sentado dentro da pia de pedra que servia de bebedouro das galinhas. A Guarda veio, tomou conta da ocorrência sem testemunhas, apenas com as declarações do Ti-Bento que afirmava ter visto naquele preciso momento duas galinhas a depenicar milho no chão. Ora não havendo milho por ali, a investigação concluiu que as galinhas depenicavam os restos mortais do sorriso do “amigo-da-onça”, que lhe tinham saltado da dentição para o chão, e dali para o papo das poedeiras.
          A curiosidade era muita, mas o Legionário não descosia o segredo. Só passado algum tempo quando a malta regressava da escola, depois de um desaguisado-sério com os repetentes da 4ª do lugar vizinho, roupa esfarrapada, arranhões e nódoas negras na cara e afins, para além da desgraça da minha samarra alentejana novinha em folha ter deixado o pelo da gola no campo de batalha. Só então o Legionário pediu ao Tio-Bento para nos reagrupar que queria ter uma conversa connosco no seu quinteiro.
          Mandou-nos sentar à “birmanesa” e começou por pedir-nos para jurar de nunca agredir ninguém, de nunca frequentar locais propícios a desacatos, de só se defender das agressões depois de esgotadas todas as soluções, e só em risco de vida tentar defender-se de armas brancas acrescentando: “mais vale um cobarde sem carteira vivo, que um herói com carteira morto”.
          Regras a mais para os princípios de quem tinha sede da desforra com os repetentes da 4ª já no dia seguinte. Metade da malta desistiu das aulas ao primeiro dia, preferindo passar o resto da vida a comer “pela medida de Castro” que jurar amor eterno a tão apertadas restrições.
          Na aula seguinte o Legionário desenhou um boneco numa pequena lousa com caixilho de madeira, marcou um traço vertical no centro do boneco e outro horizontal à altura dos ombros. “Esta é a linha central que devereis defender. Rosto, garganta, plexo solar, testículos, joelhos, canelas e tornozelos. A vossa linha central é a do vosso adversário que devereis atacar. Ignorai as partes periféricas do corpo. O mais rápido para chegar de um ponto ao outro é uma linha reta, razão pela qual a vossa posição de defesa será sempre em frente à linha central do agressor e à distância do vosso braço-ponte que serve de radar para captar tudo que tente passar por ali. Há que respeitar as regras mantendo-se sempre descontraído economizando os movimentos. Caminho livre – seguir em frente. Caminho ocupado – manter-se colado. O agressor força – deixar passar. O agressor recua – seguir e manter-se colado”.
          “O wing-chun não bloqueia para atacar, ao defender ataca em simultâneo. Não tem graduações nem regras, sendo uma prática de defesa pessoal, a única regra é imobilizar o agressor. Se demorar mais de cinco segundos para despachar o adversário há 90% de possibilidades de perder a batalha.”
          Tudo começou pelo “Siu-Lin-Tao”, um género de coreografia com 108 movimentos que só depois de percebe-los seguiu o “Chi-São” treinado com um colega para aprender a sensibilidade e os reflexos tácteis. Mais tarde veio o “Chan-Kiu” para aprender a olhar o agressor de ângulos diferentes e para sincronizar os membros superiores com os inferiores. E só muito mais tarde veio o “Biu-Jee” para aprender a concentrar toda a energia numa só batida usando mãos e cotovelos com o corpo em rotação.
          Aqui chegados a procissão ainda não saíra do adro. O legionário foi cortar a ponta de um carvalho que enterrou no chão ao lado do canastro, deixando de fora a altura de um homem com dois galhos do tamanho do antebraço ao nível dos ombros, outro galho ao nível do plexo solar, e mais um a servir de perna como quem vai chutar. Batizado de “Parceiro” servia como corretor dos ângulos e das técnicas aprendidas anteriormente. A prática constante desenvolvia força, energia e potência dos braços punhos e pernas.
          Quando chegou a fase do bastão e das armas brancas já só restávamos dois, e também tinha chegado a hora de fazer-se à vida. Na altura não era uso ver filhos e netos de barba rija a viver à pala dos avós e dos pais. Não éramos piegas nem precisávamos do acordo de Schengen (que andava a monte), nem dos voos low cost e do TGV à porta. Umas pedreiras em cabedal-de-boi eram suficientes para ir a pé à procura de uma vida mais digna, ao contrário de muitos mamões, que dificilmente encontrarão uma vidinha melhor do que aquela que tem.
          Passados alguns anos chegou a notícia que o Legionário tinha acertado contas com o Criador. Paz à sua alma e obrigado pelas sábias recomendações que sempre nos evitaram de por em prática a teoria da sua arte.
          Recentemente na companhia de um velho amigo (que nunca entendeu nada do o “Siu Lin Tao”) visitamos o quinteiro do Legionário, agora povoado de silvas que invadem as imediações. Com algum sacrifício conseguimos abrir caminho até ao canastro. Imponente, em posição de “Jum-Sau”, o “Parceiro” com dois palmos de corrente do cão (corroída pelo tempo) pendurada no braço direito, no esquerdo baloiçava o pedaço da asa de uma cesta de madeira. Em harmonia como quem dança a ultima valsa, reatamos a sessão de treino outrora interrompida.
          Terminada a sessão pareceu-me ouvir: “quarenta anos de longa espera, para que este “Badameco” me venha acariciar como uma velha prostituta”. Fiquei ofendido. A valsa terminou. Pendurei a casaca no trambelho da cancela, voltei para acertar as contas com o “ Parceiro”. Um duplo Bong-Sau / Gan-Sau, reforçado de Junk-Tekj au nível da virilha, foram suficientes para desenterrar o Parceiro do chão. Com falta de treino para a queda foi bater na mó do canastro e partiu um braço. Com falta de treino para o ataque parti um dedo, pedi ao amigo carpinteiro para enterrar o “Parceiro “e para curar-lhe o braço com cola branca da madeira. Pedi à mulher para me encanar o dedo com duas caninhas. Os combalidos foram para convalescença com a promessa de voltar à carga antes que a história seja definitivamente contada. Isto não vai ficar assim…

domingo, 14 de fevereiro de 2016

“Quem me quer não quero eu”


          A situação dos refugiados recorda-me a frase do Sr. Avelino, (quem eu quero não me quer, quem me quer não quero eu), que regressou do Brasil mais teso que pau de galinheiro, mas satisfeito porque não emigrou para fazer fortuna mas para ganhar a senhoria que o arrancasse do lote de um Avelino qualquer.
          A frase era repetidamente badalada quando a conversa encalhava no seu enlace matrimonial. O “Sr.” tinha várias pretendentes ao cargo, mas quando se lhe apresentava uma das que, “quem me quer não quero eu”, fazia questão de fazer-lhe a prova do algodão que terminava sempre num berbicacho por culpa da falta de eletricidade e de água corrente, e ainda o bônus do fumo da lareira que levou a senhoria do Sr. Avelino a findar a vida solteiro com a frase e o saquinho do algodão pendurado na cabeceira da cama.
          Tal como o Sr. falecido, os refugiados também fizeram a prova do algodão ao nosso País, agora com eletricidade, água corrente e o bonos do ar climatizado, o nosso querido País continuaria solteiro com o triste resultado de o algodão ficar mais sujo que o chapéu de um pobre à moda antiga com tanta porcaria que anda por aí.
          Já nem se consegue realçar aquilo que temos de bom. Um dia um colega estrangeiro quis saber o nome de um prato típico da nossa gastronomia. Sugeri-lhe o bacalhau, (palavra que nunca conseguiu pronunciar corretamente) e para descrever-lhe o tipo do produto com a mão a ondular como quem vai a nadar, lá consegui transmitir-lhe que se tratava de um peixe. O colega foi comprar uma folha de “bacalau”, e só no dia seguinte quando vi que o homem deitava lume pela boca e que os pipos da cerveja não conseguiam apagar as lavaredas, me lembrei de ter esquecido de o alertar para por o (bacalau) a demolhar pelo menos durante um dia. Quando depois convidei o amigo para visitar o meu País, respondeu que nem com uma corporação de bombeiros à perna cá poria os pés.
          Outra vez, quando orgulhosamente mostrava Portugal no mapa a uma colega, (também estrangeira) respondeu-me que aquilo parecia um campo de futebol e que se o Eusébio marca-se um canto com mais força teria de comprar barbatanas para ir buscar a bola au mar, ou então teria de tirar o passaporte para ir busca-la à Espanha.
          Mas como não há duas-sem-três, depois de uma vida a virar frangos por aí, consegui encontrar um país com um povo igualzinho ao nosso. Nos dias de festa todos levavam uma galinha viva que atiravam aos crocodilos do pântano antes de, entusiasticamente começar a aplaudir e cantar. O chefe lá do sítio viu que não tínhamos galinha, ofereceu uma à minha colega, que menos bondosa com a bicharada, tratou de meter-lhe a cabeça debaixo da asa para a adormecer antes de enfia-la sorrateiramente na bolsa da velha mota (com dois selins de molas e matricula no guarda-lamas da frente) que tínhamos alugado para as nossas deslocações. Os crocodilos f….am-se, e nós saboreamos naquela noite o melhor arroz de cabidela que me lembre desde que sou gente.
          A única diferença entre lá e cá, é que isto é muito mais pantanoso, com a tradicional capoeira substituída pelo aviário para dar vasão a tanta procura, com tanta gente que prefere bater palmas à bicharada que saborear o delicioso arroz de cabidela.
          É por isso que os refugiados terão recusado a nossa bondosa hospitalidade, com receio de também serem confundidos com demais aves do mau agoiro para alimentar os predadores do pântano.
          O mundo é demasiado pequeno, e os refugiados sabem de ginjeira que não conseguimos sair do “lixo”, que somos tratados de piegas e de burros que puxam a carroça por tudo quanto é sítio no mundo. Eles sabem que os nossos governantes andam há meio século a mostrar o que valem, e que na verdade mostraram valer muito pouco. Apenas tem mostrado habilidade para convencer os amnésicos de sempre a procurar a côdea no ninho da casota do cão, sabendo de antemão que no lugar da côdea vão encontrar as pulgas que o Bobby lá esqueceu.
          Os refugiados dão um exemplo de coragem a esta espécie de gado manso que pasta toda a erva que lhe põe pela frente. Preferem morrer debaixo das bombas do (seu) Oriente, que naufragar no lodo do pântano do (nosso) Ocidente onde presente e futuro se afogam para sempre.
          Eles sabem que um País cheio de idosos a morrer abandonados, outros a morrer nos corredores (da morte) dos hospitais, reformados e crianças a passar fome, é um país que não serve de exemplo nem de asilo para ninguém, a não ser para os entusiastas seguidores dos crocodilos do pântano.
          Os refugiados sabem que esta malta tem estômago para tudo, até para caçar os €6000 de ajuda comunitária (por cada) para depois os abandonar à sua sorte.
          Quem no seu perfeito juízo escolhe um país onde a palavra de honra é letra morta? Um país onde quem perde eleições governa, e quem ganha é governado? Onde se transmite aos jovens os míseros exemplos que para conseguir na vida é preciso rasteirar os amigos e praticar trafulhices para lá chegar? Os nossos governantes são o rosto desse triste exemplo.
          Os refugiados sabem que esta gente já não consegue dissimular a falsidade com que geneticamente vive. Até sabem que já substituímos as comemorações do dia da liberdade e da implantação da república para comemorar os aniversários das saídas de políticos corruptos dos calabouços. Vergonhas que cavalgaram fronteiras e que destruíram a credibilidade do nosso País. Agora rezemos-lhe pela alma.
          “Um dia, num futuro que não vem longe, uma estranha frota de velhos navios corroídos pelo tempo e pelo uso parte do golfo de Bengala e ruma em direção à Europa. Traz a bordo um milhão de estropiados, os esfomeados dos “países subdesenvolvidos”, que, cansados da miséria, resolvem bater às portas do paraíso do homem branco”. Assim foi feita a apresentação do livro, “Mortos/Duzentos milhões/Todos nós”, de Jean Raspail, que parecendo uma obra de ficção é sobretudo uma obra de antecipação não exatamente científica.
          A velha frota de navios corroídos pelo tempo ainda não largou as amarras do golfe de Bengala. É do mar egeu que os velhos navios corroídos pelo tempo largaram amarras com centenas de milhares de famintos e estropiados que o paraíso do homem branco intencionalmente estropiou.
          Nada acontece ao acaso. A Europa fabricou famintos para legitimar a velha tradição terceiro-mundista de levar galinhas à festa para alimentar os predadores do pântano e para mostrar ao inobediente homem branco que é proibido apreciar o arroz de cabidela.
          Finalmente é preferível morrer solteiro, que viver o resto da vida entulhado na porcaria. Sábia frase do Sr. Avelino. “Quem eu quero não me quer, quem me quer não quero eu”.