16/11/2013
Talvez, que as memorias representem a capacidade de
fantasiar o passado, recordando a nostalgia da infância, onde o ponto de
partida pode ser um elemento tão simples como um odor, um som oriundo de um
tempo perdido
Outra coisa é sonhar de olhos abertos com esta idílica terra de
Deu-la-Deu e recordar com saudade o Didon (amigo do peito) e seu receituário
mágico, que fez com que o burro da Sagrada família colabora-se com mais
entusiasmo na encenação do Presépio vivo da missa do galo.
O Didon, um veterano já com a dúzia de primaveras, nunca
tinha assistido a nenhuma missa do galo, pois quando tinha desejos de participar
faltava-lhe a idade, e quando sobrevieram os anos, abalara-se-lhe a fé. Naquela
idade em que andamos zangados com tudo, ele considerava uma alarvidade
importunar a malta com missas fora de horas.
Decorriam os anos do Twist, era véspera da missa do galo e dia
de confesso para os da primeira comunhão do ano anterior. Na casa-da-mesa, os
mais velhos faziam o “casting” para seleção dos figurantes à representação do
povo de Belém. Levavam vantagem os candidatos com artroses agudas, que
garantissem qualquer falso movimento durante a encenação. O Chanquinhas e sua
companheira, foram selecionados por possuírem os requisitos exigidos pelo júri.
Já o sol se escondia
detrás do sino grande da torre, a fila à porta da Sacristia crescia como
leite-ao-lume. Depois do tilintar da aldraba, abriu-se a porta, o Didon saía do
confessionário com cara de poucos amigos. O Zezinho (de confiança duvidosa) já tinha
confidenciado ao padre António, uma relação detalhada dos nossos pecados, a
começar pelo “sacrilégio” de numa noite de temporal, termos escondido a mota do
bom pastor no meio do campo de milho, enquanto o bem-aventurado dava o seu
melhor para consolar a inconsolável (fresquinha) jovem viúva, que andava triste
e desolada pelo desaparecimento do seu ente querido, que Deus chamou a si, para
dar mais conforto e facilidade ao seu representante na terra.
Quando tentei fugir, já o padre António me tinha enganchado a
bengala no pescoço, para sentenciar uma penitência do tamanho da longa lista de
pecados a confessar, que vinha em crescendo desde o confesso do ano anterior.
O Padre esqueceu-se das recomendações do Chapa-lisa: as
grandes dívidas dificilmente serão saldadas;
“se te devo um vintém tenho um problema, se te devo mil o problema é teu”.
Assim nascem os caloteiros espirituais.
Chegou o tão desejado dia. Três horas de Igreja, a não contar com os
intervalos, as cantorias e um auto de Natal com presépio vivo, bicharada, pastores,
anjos de asas (com penas e tudo) a tocar trombeta anunciando a chegada do
Senhor. O burro, conhecido por Janitas, era famoso na paróquia pela teimosia e
mau feitio. No dia da festa, apresentou-se lindo e asseado, de clina escovada,
engalanado com dois rabinhos de raposa pendurados nas orelhas, arreado com
albarda de pele genuína, na qual se sentava a Virgem Maria.
Tive a nobreza de representar Pedro, o pescador. O Zezinho representava
José, o carpinteiro com o Janitas à corda, o Didon, representava Baltazar, o
rei mago que estrategicamente se colocou atrás do Burro.
A dada altura, tal como combinado, o Didon saca o receituário composto
de um papel de cigarro que embrulhava alguns gramas de pimenta negra, capaz de por
um moribundo a correr a meia maratona, e delicadamente com a ajuda do dedo indicador
colocou em parte anatómica do Burro, ainda hoje um mistério por desvendar.
O Janitas deu logo sinais de vida, e começou a lamber a nuca
ao Zezinho. Perante tal acontecimento, os fiéis murmuravam: Milagre, Milagre.
Desconfiado das intenções eróticas do Janitas, o Zezinho chamou a mamã que logo
correu em socorro do seu rebento para por cobro á química que nascia entre o
Janitas e José, o carpinteiro.
Baltazar, o Rei Mago perante o desenrolar da situação,
afastou-se sorrateiramente do trono, no caso de o Janitas necessitar de mais
largueza. Ou não escrevesse Deus direitinho por linhas arrevesadas, porque exatamente
no momento em que o Padre sobe ao púlpito e começa a debitar o sermão aos
fiéis, o burro com o susto, deu um salto e atira a Virgem Maria para os braços
do Anjo Gabriel, o coelho trazido pelos pastorinhos galgou Altar-mor acima,
derrubando tudo na passagem, incluindo junquilhos e castiçais.
O Padre vigiava do canto do olho, e subia os decibéis da pregação. O
Janitas volta à carga, e dá um coice no poleiro do galo, este liberto das
contingências, faz escala na cabeça do Chanquinhas antes de aterrar em voo
copulado no Harém das galinhas. Perante a passividade dos fiéis presentes, o
Pescador e o Rei Mago, de cajado em riste avançaram para por ordem no Presépio,
que andava todo à tapona incluindo a Virgem Maria e o Menino Jesus.
Por um momento, senti-me vingado do poder materno, que me
obrigava a dar o meu melhor em tais encenações. O Padre no púlpito parecia um
disco riscado. “Deus é grande, meus irmãos. Deus é grande”.
Ah mundo-sagrado: quem nos dera ver os Janitas d’agora a
suar as estopinhas como o Janitas da missa do galo d’outrora.
Deus é grande, todo-poderoso, não vai abandonar-nos no meio
desta manada, antes de sussurrar-nos ao ouvido o segredo do receituário mágico
de pimenta negra, e a mágica pontaria do indicador, para que os Janitas
colaborem com mais entusiasmo no progresso desta idílica terra de Deu-la-Deu.
A fantasia e o sonho do passado, transformaram-se no
pesadelo do futuro, sem horizonte e sem espectativas, enquanto os fiéis defensores
destas matilhas se comportarem como o, ” corno
que sabe que é mas não quer saber, e agradece a quem los faz crescer.
Hoje talvez achasse piada àqueles bosquejos etnográficos de
religiosidade popular. Mas prefiro pensar que assisti a um dos mais belos «gag»
digno do melhor Fellini, com esta obra-prima, “A odisseia dos burros” tão
famosos a relinchar e a coicear, e tão desastrosos a decidir e a governar. “Arre…..?”.