03/09/20015
Diz o povo (pelo menos por estas
bandas) que, “a população menos acanhada é aquela que mais canta à desgarrada”,
ao contrário dos copinhos não sei de quê, que não assobiam nem cantam, querem agradar
a todos e desagradam a toda a gente, não falam, não escrevem, nem saem de cima,
até parece que tem medo de morrer de fome se o dono lhes corta a palha da
ração.
Por isso sempre desconfiei das “virgens
ofendidas” que em criança nunca atiraram uma pedrada aos vidros da janela do vizinho,
que nunca desmontaram a corda do relógio-de-bolso do avô, que nunca colocaram
pioneses na cadeira do padre e do professor, para não falar dos dias de aulas
passadas aos grilos e às grilas em vez de ir aturar o mau-humor do professor
que teve de jejuar e passar a noite a dormir no pátio da porta com o Bobby.
Eu que sempre fui um gajo com
requisitos e padrões de verticalidade-perpendicular-comportamental normalíssima
nessas andanças, a quem nunca passou pela cabeça que existe uma idade-padrão
para fazer asneiras, jurei que desta vez continuaria malhar o ferro, trocando as
habituais fontes de informação para ir ver onde param as modas no meio do calor
do povo como eu.
Usei então o remanescente da
inspiração para convencer a patroa de poder baldar-me à trela e curtir uma
noitada de verão a solo nos festivais, arraias e demais materiais á solta que
andam por aí. E se a noite não der para mais nada, pelo menos que dê para refrescar
a mente e limpar a vista a contemplar os deslumbrantes pilares desses monumentos
vivos verdadeiros patrimónios da humanidade.
Benzi-me umas vinte vezes ao
longo da viagem a pedir ao Criador para que tudo desse certo com a arriscada estratégia
de ter reinventado o funeral de um amigo do Porto que Deus lá tem há meia dúzia
de anos. A patroa achou bem, apadrinhou a atitude solidaria sublinhando que os
amigos são para sempre. Preparou-me o fato que pendurou no cabide do banco traseiro
do carro.
Chegado à invicta, (terra do
falecido) comecei por reconfortar o “dorido” no típico “Mal Cozinhado” com uns
pastelinhos de bacalhau e arroz de feijão, sentado à mesinha redonda ali mesmo
em frente ao pegão dos dois arcos em granito, a ouvir o encanto do fado vadio interpretado
pela encantadora fadista Rosinda Maria, ela acompanhada à guitarra e eu à
garrafinha de tinto do fundão fresquinha para me arrancar das unhas do inferno
quotidiano e elevar-me até ao paraíso, pelo menos enquanto fazia a trasfega da
garrafinha para o vasilhame e a Rosinda não dobrava o xaile para dar por
terminada a sua atuação.
Continuei a digressão paradisíaco
na “Tendinha dos Clérigos”, farol vigilante das velhas faenas, para saborear
mais três copas ao som de um saudoso e divinal “Rok-And-Roll” antes de iniciar o regresso na companhia de um jovem
casal que pediu boleia até um lugarejo perdido perto de Vila-Verde.
Já com as coordenadas todas a
caminho da “Terra”, foi (ali) perto de Arcos-de Valdevez que fui atraído pelo
toque da concertina e do cantar à desgarrada. Senti o fluxo sanguino acelerar
com o pulsar do verdadeiro calor do povo de que gosto, ou não tivesse eu crescido
a ouvir o “Delfim, o Marinho, o Sargaceira, o Cachadinha”, e a dar tareia-brava
na avó (salvo-seja) a cantar à desgarrada à volta da lareira nas longas noites
de inverno.
Uma enorme multidão rodeava um
grupo de artistas com três tocadores e outros tantos cantadores. Para não
perder pitada do espetáculo subi as escadas da casa-da-mesa e sentei-me no
pátio de pedra ao lado da senhora Rosqueira a quem pedi para me atar meia dúzia
de roscas num cordelinho a fim de reequilibrar a queda do açúcar provocado pelo
desgaste da longa viagem entre o além do Fado e do Rok-And-Roll, e o aquém da desgarrada e do açafate das roscas.
Foi quase no tempo dos descontos que
encontrei o que procurava nas sábias palavras da sabedoria popular. Num pedaço
de toalha-de-papel gentilmente disponibilizada pela doce senhora anjo-da-guarda
da minha glicemia que comecei a escrever esta cronica.
Ao toque da concertina que até dava
arrepios na espinha, entrava o primeiro cantador a desafiar o segundo e
terceiro. “Portugal está tão
sombrio, por andar mal governado, por um governo vadio, que só rapa pró seu
lado”. Respondia o segundo para o primeiro
e terceiro. “Quem tem governos quem
tem, governos de quem fiar, quem tem governos tem sorte, quem não os tem, tem azar”.
O terceiro para o segundo e primeiro. “Com muitos que tu passeias, têm cuidado não te iludas,
mostram-te boa figura, mas são falsos como Judas”. E assim continua a desgarrada. “É uma camaradagem, nos
copos são tão fingidos, quando falta o dinheiro, também faltam os amigos”. “Ao
recordar o passado, olhando agora o presente, como isto está mudado, com tanta
coisa diferente”. “Dizem que é evolução, finalmente é uma miséria, há mais
vigaristas e ladrões, do que gente humilde e séria”. “Meus amigos hoje-em-dia,
há vários tipos de ladrões, uns roubam pouca valia, outros roubam aos milhões”.
“O ladrão que é mal trapido, coitado rouba em segredo, mas o ladrão bem
vestido, rouba à vista e sem medo”. “Há quem roube pra comer, já não tem outra
opção, se rouba pra sobreviver, isso não é ser ladrão”. ”Ladrão é ter o poder,
sem qualquer dedicação, quando rouba tem prazer, e faz disso profissão”. “Hoje
em dia há ladroagem, em bandos e batalhões, sorriem noutra linguagem, com
segundas intenções”. “Não temei os desgraçados, que roubam com certa lata,
temei aqueles gatunos, de fato e de gravata”. ”Fui roubado fui roubado,
protesta o povo na rua, quem houve fica assustado, e quem rouba continua”. ”E
lá vão eles na vaga, a comer e passear, e aqueles que tudo pagam, só têm
direito a reclamar”. ”Com tamanha epidemia, é preciso ter coragem, para
enfrentar e sentir, a força da ladroagem”. ” Isto é um destrambelho, já nada nos
reconforta, é sinal de alerta vermelho, com muitas trancas na porta”.
Ainda estou a salivar com a última
quadra de despedida cantada em coro pelos três magníficos artistas populares: “Foi em terras de Barroso, às cinco da
madrugada, no coração de uma Aldeia, se cantou à desgarrada”.
Já o sol ia alto com a gente sair
da missa quando cheguei a casa, a patroa à minha espera com ar de quem quer
passar a mão no pelo. “Olha-me só para
isto, coitadinho tão triste e cansadinho de tanto chorar pelo amigo que em 2009
acompanhamos até à sua última morada no Cemitério do Prado do Repouso na
freguesia do Bonfim: finalmente amigo que é amigo, mesmo sepultado é amigo para
sempre”, concluiu.
“Caíram-me ao chão”. Não me
lembrava do eterno amigo, sem perder a compostura, ainda manietado com a corda
toda da desgarrada, puxei dos galões e respondi-lhe em quadra para enquadrar este
quadro mal encaixilhado: “Por tudo que
já passei, já pouco ou nada me assusta,
na próxima vez vais tu, para saberes quanto custa”.
E eu a pensar que andava sozinho
a pregar no deserto. É do Minho para o mundo que vai o exemplo: “a gente menos acanhada é a que mais canta
à desgarrada”.
Não vou perder mais tempo para
fazer pele vida. “Pedro-Paulo e Costa,
são os três da vigairada, se não trancamos as portas, comem tudo não deixam
nada”. “São os três da vigairada, disso tenho a certeza, são pior que o Viagra,
deixam toda a malta tesa”.
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