Já poucos se lembravam do
“Mandarim” quando regressou à terra natal. Agora conhecido por “Legionário”, nome
que conquistou depois de alistar-se nas forças especiais da Legião Estrangeira
Francesa para combater na guerra da Indochina (atual Vietnam do Norte, Camboja
e Vietnam do Sul) ao lado das Forças Armadas Francesas.
Homem educado, de fino trato, admirado de todos, de escassas mas de pesadas palavras, alheio aos disque-se-disse e aos cochichos de lareira. Lobo solitário portanto, que caçava apenas para suprir as mais prementes necessidades indispensáveis à sobrevivência.
Homem educado, de fino trato, admirado de todos, de escassas mas de pesadas palavras, alheio aos disque-se-disse e aos cochichos de lareira. Lobo solitário portanto, que caçava apenas para suprir as mais prementes necessidades indispensáveis à sobrevivência.
Um final de tarde como tantas
outras, estávamos velhos e novos reunidos (matilha incluída) no largo da
encruzilhada a ouvir as notícias trazidas pelo companheiro da “Calina”, um
alfacinha-de-gema com cabedal valente, para além de outros valentes cabedais
que tinha na conta-corrente. Conhecido por “amigo-da-onça”, (não pelas
corriqueiras e habituais razões mas) porque enrolava cigarros com tabaco de
onça-preta.
Quando enrolava um cigarro a onça
caiu-lhe ao chão. O Legionário com estranha cortesia em uso naqueles tempos,
apanhou a onça que entregou ao visitante. Este, ao ver tão obediente
disponibilidade voltou a deixar cair a onça, e sem pingo de cortesia ordenou ao
Legionário para voltar a apanhá-la.
Até ali tudo bem. Todos
presenciamos a cena até ao momento que o Legionário se baixou para fazer o frete.
A partir daí foi com se a fita partisse ao meio, provocando uma branca na malta,
que só depois de a branca ir à vida voltamos a ver o “amigo-da-onça” (preta) a cores,
sentado dentro da pia de pedra que servia de bebedouro das galinhas. A Guarda veio,
tomou conta da ocorrência sem testemunhas, apenas com as declarações do
Ti-Bento que afirmava ter visto naquele preciso momento duas galinhas a
depenicar milho no chão. Ora não havendo milho por ali, a investigação concluiu
que as galinhas depenicavam os restos mortais do sorriso do “amigo-da-onça”, que
lhe tinham saltado da dentição para o chão, e dali para o papo das poedeiras.
A curiosidade era muita, mas o
Legionário não descosia o segredo. Só passado algum tempo quando a malta
regressava da escola, depois de um desaguisado-sério com os repetentes da 4ª do
lugar vizinho, roupa esfarrapada, arranhões e nódoas negras na cara e afins,
para além da desgraça da minha samarra alentejana novinha em folha ter deixado o
pelo da gola no campo de batalha. Só então o Legionário pediu ao Tio-Bento para
nos reagrupar que queria ter uma conversa connosco no seu quinteiro.
Mandou-nos sentar à “birmanesa” e
começou por pedir-nos para jurar de nunca agredir ninguém, de nunca frequentar
locais propícios a desacatos, de só se defender das agressões depois de
esgotadas todas as soluções, e só em risco de vida tentar defender-se de armas
brancas acrescentando: “mais vale um cobarde sem carteira vivo, que
um herói com carteira morto”.
Regras a mais para os princípios de
quem tinha sede da desforra com os repetentes da 4ª já no dia seguinte. Metade da
malta desistiu das aulas ao primeiro dia, preferindo passar o resto da vida a
comer “pela medida de Castro” que jurar amor eterno a tão apertadas restrições.
Na aula seguinte o Legionário desenhou
um boneco numa pequena lousa com caixilho de madeira, marcou um traço vertical no
centro do boneco e outro horizontal à altura dos ombros. “Esta é a linha central que
devereis defender. Rosto, garganta, plexo solar, testículos, joelhos, canelas e
tornozelos. A vossa linha central é a do vosso adversário que devereis atacar.
Ignorai as partes periféricas do corpo. O mais rápido para chegar de um ponto
ao outro é uma linha reta, razão pela qual a vossa posição de defesa será
sempre em frente à linha central do agressor e à distância do vosso braço-ponte
que serve de radar para captar tudo que tente passar por ali. Há que respeitar
as regras mantendo-se sempre descontraído economizando os movimentos. Caminho livre
– seguir em frente. Caminho ocupado – manter-se colado. O agressor força –
deixar passar. O agressor recua – seguir e manter-se colado”.
“O wing-chun não bloqueia para atacar,
ao defender ataca em simultâneo. Não tem graduações nem regras, sendo uma
prática de defesa pessoal, a única regra é imobilizar o agressor. Se demorar
mais de cinco segundos para despachar o adversário há 90% de possibilidades de
perder a batalha.”
Tudo começou pelo “Siu-Lin-Tao”, um
género de coreografia com 108 movimentos que só depois de percebe-los seguiu o “Chi-São”
treinado com um colega para aprender a sensibilidade e os reflexos tácteis. Mais
tarde veio o “Chan-Kiu” para aprender a olhar o agressor de ângulos diferentes
e para sincronizar os membros superiores com os inferiores. E só muito mais tarde
veio o “Biu-Jee” para aprender a concentrar toda a energia numa só batida
usando mãos e cotovelos com o corpo em rotação.
Aqui chegados a procissão ainda
não saíra do adro. O legionário foi cortar a ponta de um carvalho que enterrou
no chão ao lado do canastro, deixando de fora a altura de um homem com dois
galhos do tamanho do antebraço ao nível dos ombros, outro galho ao nível do
plexo solar, e mais um a servir de perna como quem vai chutar. Batizado de “Parceiro”
servia como corretor dos ângulos e das técnicas aprendidas anteriormente. A
prática constante desenvolvia força, energia e potência dos braços punhos e
pernas.
Quando chegou a fase do bastão e das
armas brancas já só restávamos dois, e também tinha chegado a hora de fazer-se
à vida. Na altura não era uso ver filhos e netos de barba rija a viver à pala
dos avós e dos pais. Não éramos piegas nem precisávamos do acordo de Schengen
(que andava a monte), nem dos voos low cost e do TGV à porta. Umas pedreiras em
cabedal-de-boi eram suficientes para ir a pé à procura de uma vida mais digna,
ao contrário de muitos mamões, que dificilmente encontrarão uma vidinha melhor
do que aquela que tem.
Passados alguns anos chegou a notícia
que o Legionário tinha acertado contas com o Criador. Paz à sua alma e obrigado
pelas sábias recomendações que sempre nos evitaram de por em prática a teoria
da sua arte.
Recentemente na companhia de um
velho amigo (que nunca entendeu nada do o “Siu Lin Tao”) visitamos o quinteiro
do Legionário, agora povoado de silvas que invadem as imediações. Com algum sacrifício
conseguimos abrir caminho até ao canastro. Imponente, em posição de “Jum-Sau”,
o “Parceiro” com dois palmos de corrente do cão (corroída pelo tempo) pendurada
no braço direito, no esquerdo baloiçava o pedaço da asa de uma cesta de
madeira. Em harmonia como quem dança a ultima valsa, reatamos a sessão de
treino outrora interrompida.
Terminada a sessão pareceu-me
ouvir: “quarenta anos de longa espera, para que este “Badameco”
me venha acariciar como uma velha prostituta”. Fiquei ofendido. A valsa
terminou. Pendurei a casaca no trambelho da cancela, voltei para acertar as contas
com o “ Parceiro”. Um duplo Bong-Sau / Gan-Sau, reforçado de Junk-Tekj au nível
da virilha, foram suficientes para desenterrar o Parceiro do chão. Com falta de
treino para a queda foi bater na mó do canastro e partiu um braço. Com falta de
treino para o ataque parti um dedo, pedi ao amigo carpinteiro para enterrar o “Parceiro
“e para curar-lhe o braço com cola branca da madeira. Pedi à mulher para me encanar
o dedo com duas caninhas. Os combalidos foram para convalescença com a promessa
de voltar à carga antes que a história seja definitivamente contada. Isto não vai
ficar assim…