03/05/2012
Sei que não é fácil atrair a atenção dos leitores para um assunto como este: “o gado”. Mas é certo que desde que me conheci como gente, até á idade de fazer-me á vida, longe da “zona de conforto”, antes que o ditador me ditasse o futuro, sempre me lembra do Pisco ser Pisco. Potente, venta fusca, cornadura imponente, era o “Bo(y)i de cobrição comunitário”. Um género de D. João das vacas, que fintou o destino para fugir da vida desgraçada a carretear ao lado de vacas magras, tristes, cansadas da lavoura e ainda obrigadas a procriar em nome do orçamento familiar, para garantir a ração na manjedoura do Pisco e do Fisco.
O Ti Gostinho (até salivo de falar nele), era o guia das cobrições. Muito antes de o Mário Zambujal ter escrito a crónica, ele já era um dos “bons malandros”. Quando a Sª Carolina vinha passar férias, elegante com decote a fugir para o generoso, o Ti Gostinho apreciava, agradecia e comentava: “que bem te fica essa gola alta”, e quando ela lhe retribuía o carinho que a idade o tinha esquecido, ele respondia, ”quando a idade começa por baixo, é assim, só resta mete-la na Casa do Povo”.
Voltando á “vaca-fria”, o ritual de cobrição era um espetáculo concorrido e apreciado pela população, incluindo o (aficionado) Sr. Abade, homem bom, com virtudes, defeitos e necessidades de outros homens, (embora com claras vantagens de as remediar) perito na poda, com provas dadas, que Deus nos enviou como pastor, (louvado seja, era branco), à imagem e semelhança do rebanho, assim a paisagem mantinha o mesmo tom de cor, e a cristandade vivia na paz do Senhor, e no cumprimento das leis da Santa Madre Igreja, com o pastor a dar de comer às “almas” com fome, de beber às “almas” com sede, a consolar as (almas) tristes, e nas horas de menos consolos, ainda batizava os nascidos, casava os amigos e enterrava os falecidos.
O ponto alto do espetáculo acontecia quando o trio maravilha entrava em cena. O Ti Gostinho coberto de gorra galega, vara de lodo e bigode farfalhudo, capaz de armazenar a ementa de toda a semana, o Ti Velino de barrete Mirandês, bengala e barba de três-quinze-dias, e o Pisco como vedeta principal, de cachaceira em pele genuína, que lhe dava um ar de pirata das Caraíbas. Quando o Ti Gostinho debitava as palavras mágicas de incentivo, ”sobe Boy sobe”, e o pisco começava os preliminares a patinar no chão, antes de subir em cima da Vaca, logo o diálogo começava a aquecer: “ que ciúmes tens do Pisco, Velino”, o qual logo retorquia, “com uma vaca diferente, até eu subia todos os dias”, e continuava, “ só queria ver o Pisco a cobrir a mesma Vaca durante cinquenta anos,” rematava a conversa com um saudável car(v)alho, que era como que o ponto final nos diálogos do antigamente.
Tudo mudou, a tradição nunca mais será o que era. Hoje, as vacas já despertam a atenção das mais altas figuras da Nação, tal como aconteceu na visita presidencial aos Açores em 21/09/2011, em que o Sr. Presidente comentava: “ ontem reparava no sorriso das vacas. Estavam satisfeitíssimas olhando o pasto que começava a ficar verdejante”.
Tal como nos Açores, como é delicioso ser Boy e Vaca no Continente. Cavaco sempre percebeu que o seu (risonho) futuro passaria pelo mundo rural, e que Portugal sempre dependeu do gado: do bravo e do manso. Ele sabe que as vacas já deram provas do seu patriotismo. Quem não tem na recordação a Batalha de Salga em 1581, onde oitenta destemidas vacas desceram das pradarias, investiram contra os afoitos desembarcados, e desbarataram a invencível armada de Filipe II. Cavaco sabe que onde não há carga de cavalaria, sempre resta a carga da vacaria.
O Timoneiro que suplicava, “deixem-me trabalhar”, declarava, “nunca leio jornais”, e afirmava “nunca me engano e raramente tenho duvidas”,( tantas vezes nos enganou) é ainda conhecido por “pai do Monstro, do Centro Cultural de Belém, do B P N, de Oliveira e Costa, Dias Loureiro, Duarte Lima”, pode ainda reclamar a paternidade do I R S, I R C, e dos chorudos subsídios comunitários, para manter Boys e Vacas cada vez mais gordas, a pastar nas pradarias verdejantes de famílias cada vez mais magras, que são o prenuncio do fim da abundancia, e da era do caVaquismo. O fim da fartura anuncia miséria, a que o “Homem do Leme” não conseguiu escapar, nem as mordomias das ajudas de (nosso) custo, cama, mesa, roupa lavada, e a misera reforma de 12.000 € mensais, acrescidos das prendas nas ações do Banco Pai Natal, 147 mil mais 209 mil euros (de recompensa ao pai e à filha), por obra e graça (de Oliveira e Costa) do Espirito Santo, não chegam para pagar despesas e garantir uma vida digna de um cidadão digno, que não é a mesma vida de um velhinho (indigno), que tem a alternativa de morrer à mingua, emigrar, ou desenrascar-se com a “pechincha” de 300 € mensais, para pagar taxas moderadoras, medicamentos, renda da casa, água, luz, alimentação, deslocações, sem cama, mesa, nem roupa lavada, e sem as ajudas (de custo) da própria família.
Voltando ao “gado”, era uma delícia, assistir às tertúlias em que os velhos amigos comentavam as suas aventuras da praia. Descalços de calças arregaçadas, a banhar os pés, com a vista a pastar nas esculturais filhas de Eva, antes de entrar noite dentro, em pastagem de maior proximidade, a deixar-se embalar pelo “savoir faire” das representantes da mais antiga profissão do Mundo, para terminar a noite numa adega a cantar em coro: “Quero morrer numa adega/ com um copo de vinho na mão/ a adega é o meu cemitério/ a pipa o meu caixão”. Deus não gostou das cantorias, e não ouviu as suas preces. Para que as minhas não tenham o mesmo destino, vou meter uma cunha a São Roque protetor do Gado, para interceder perto do Criador, que tenha a caridade de não castigar este pobre pecador, com a maldade de o obrigar a viver para eternidade, no meio de Boys, Vacas, e Vaqueiros transformados em serventes de Vacaria da Troika, que transformaram os “Heróis do mar nobre povo”, numa manada que já iniciou a marcha para o matadouro, aos pinotes de contentes enfeitados com raminhos de rosas nas hastes.
Renascem os traumas, erguem-se os espantalhos da emigração, sacode-se o pó do velho vinil para recordar a arrepiante melodia: “Partir é morrer um pouco”.
“Adeus parceiros das farras / dos copos e das noitadas / adeus sombras da cidade [.] Adeus langor das guitarras / canto de esperanças frustradas / alvorada de saudade.”
“Meu coração como louco /quer desgarrar-me do peito /transforma em soluço a voz [.] Partir é morrer um pouco / a alma de certo jeito / a expirar dentro de nós.”
“Deixo minha alma no cais / de longe quero sinais / feitos de pranto a morrer [.] Quem morre não sofre mais / mas quem parte é dor de mais / é bem pior que morrer.”
É o fado de um povo que anda de cócoras, que perdeu a vergonha, a alma, a dignidade, dependente de esmolas, que vai definhando e morrendo do parasitismo de si próprio, num País sem rumo e sem convicções sem inteligência, governado com políticas de interesses e compadrios, em benefício de “boys e Vacas”.