quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O povo que morre sem rio.

            (15/04/2001)
O Rio Mouro, que ainda alimenta o pão da boca de muita gente, com margens idílicas que reflectem nas águas paradas como um espelho, as imagens dos arbustos que dão a impressão exacta de que o rio é um jardim de verdura.
Uma ponte de tábuas com meio metro de largura, suspensa por duas cordas de arame cravadas nas rochas das margens do rio, era passagem obrigatória da Moleira, que diariamente ao meio dia, partia com o burro carregado com foles de farinha. Voltava a meio da tarde, agora com os foles cheio de milho para a moagem do dia seguinte, em troca de uma pequena maquia para o sustento da família, burro incluído. Entre o meio-dia e o meio da tarde, nem vivalma passava por ali.
Nós, a catraiáda, despidos de roupa e de preconceitos, aproveitávamos as aulas do Faneca, mergulhador nato em salto de parafuso com botas, enquanto os menos mergulhadores, se refrescavam com os salpicos da água projectados pelo rodízio do Moinho.
Tal como viemos ao mundo, assim fomos apanhados pelas avós, que lá de cima da ponte, ralhavam e ordenavam o imediato regresso dos netos, pois aos seis anos, era duvidoso o juízo e a maturidade para lidar com os caprichos do rio. De pouco serviu a repreensão, continuei a visitar o rio, com o qual aprendi a lidar, a respeitar seus caprichos e a sua fragilidade.
Anos mais tarde, enquanto atava o fio na cana-da-índia, contemplava o corpo da Eva, deitada de bruços em cima de uma ampla pedra lisa, banhada por dois dedos da água, que lhe ia acariciando o rosto ao ritmo da suave corrente do rio.
Enquanto a truta (pinta) me ensinava a pescar, ia observando o bambalear da ponte (provocado pela suave brisa do vento), o cantar da mó do moinho, e a harmonia do corpo da Eva, com o encanto da água do rio, que aparecia ali na curva em pequena cascata, aproximando-se de mim em lentas ondulações, e pequenas correntes a levar-me a bóia, que logo devolvia como quem queria cumprimentar se incomodar.
Ainda hoje continuo religiosamente a visitar o rio, e a sentar-me no mesmo local: a mó do moinho parou, a ponte agora sem tábuas teima em manter-se suspensa pelas cordas de arame, como testemunho dos tempos que marcaram uma vida para sempre.
O rio, contínua cheio de encanto, o seu feitiço e magia traz á memoria as imagens das avós em cima da ponte. Na outra margem contínua imperturbável a pedra lisa, a recordar a Eva, como uma flor que se abria à luz do dia banhada na água do jarro, rio mouro.
Na pujança da sua juventude, uma doença maligna ceifou a Eva para sempre, o coração, cansado da vida batia pela derradeira vez, a doença, pouco a pouco foi definhando e consumindo o seu (escultural) corpo, que agora ninguém suportava ver, aquela pele a embrulhar o esqueleto, de quem há bem pouco tempo era um hino à beleza das mulheres.
Dizem que foi Deus que a levou, se assim é, pois que seja feita a sua vontade.
O Rio Mouro, sem rugas, belo e asseado como sempre, desde há milhões de anos, continua a guardar os segredos e a ligar gerações da gente do Vale do Mouro, que encontram nele a sua identidade e o motivo do maior orgulho. Mas um mal nunca vem só: agora, na ausência da mão de Deus, a mão criminosa do homem, vai atacar de morte o nosso rio. Uma epidemia chamada Barragem de Cubalhão, com 51 metros de altura, será um monumento erigido à ignorância e à barbaridade, que caracteriza os oportunistas devastadores da natureza, com o objectivo de engordar ainda mais a conta bancária, á custa de vidas e do bem-estar de pessoas completamente abandonadas, por governantes verdadeiros energúmenos e tropeços da sociedade, incapazes de proteger os bens que lhe foram confiados.
O Rio Mouro está a ser atacado de morte, e a gente do Vale do Moro também. É desonroso e ofensivo à nossa dignidade de povo, que tem direito de ser respeitado. É forçoso que o povo do Vale do Mouro, acorde desta doença insidiosa de conformismo, para limpar do seu horizonte as teias de uma governação que cheira a mofo, e se traveste de desenvolvimentista. Fica desde já o dedo apontado à vergonha de quem ainda a tiver, e à consciência de quem ainda a mantém intacta.
Tal como a Eva, o Rio Mouro vai definhar e ficar consumido, em breve a flora em agonia, vai transformar-se na pele que embrulha os esqueletos da fauna e do rio, que durante milhões de anos foi o hino aos rios mais puros, encantadores e mais belos do Mundo.
Em nome das Avós e das “Evas”, nós netos e namorados, não vamos permitir, nem assistir ao funeral do rio, que é o padrinho do Vale do Mouro e não o queremos perder.
“O povo que morre sem rio”, não aceitará que lhe talhem com o machado, as tábuas do seu caixão.

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